segunda-feira, 13 de abril de 2009

Murilo Mendes

Mapa


Me colaram no tempo, me puseram uma alma viva e um corpo desconjuntado.

Estou limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo, a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.


Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluido, depois chego à consciência da terra, ando como os outros, me pregam numa cruz, numa única vida.

Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.


Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.

Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado, gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar, alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem nem o mal.


Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter, tonto de vidas, de cheiros, de movimentos, de pensamentos, não acredito em nenhuma técnica.


Estou com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas, é por isso que saio às vezes pra rua combatendo personagens imaginários, depois estou com os meus tios doidos, às gargalhadas, na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim.


Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações…

Me desespero porque não posso estar presente a todos os atos da vida.


Onde esconder minha cara? O mundo samba na minha cabeça.

Triângulos, estrelas, noites, mulheres andando, presságios brotando no ar, diversos pesos e movimentos me chamam a atenção, o mundo vai mudar a cara, a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.Andarei no ar.


Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias, me aninharei nos recantos do corpo da noiva, na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.


Tudo transparecerá: vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra, o vento que vem da eternidade suspenderá os passos, dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres, vibrarei nos cangerês do mar, abraçarei as almas no ar, me insinuarei nos quatro cantos do mundo.


Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes.

Detesto os que se tapeiam, os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens “práticos”…

Viva São Francisco e vários suicidas e amantes suicidas, os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães, as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.

Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito… viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.


Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados, dos amores raros que tive, vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor, tudo é ritmo do cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria, estou no ar, na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,

no meu quarto modesto da praia de Botafogo, no pensamento dos homens que movem o mundo,

nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando, sempre em transformação.




JANDIRA


O mundo começava nos seios de Jandira.


Depois surgiram outras peças da criação:

surgiram os cabelos para cobrir o corpo,

(às vezes o braço esquerdo desaparecia no caos).

E surgiram os olhos para vigiar o resto do corpo.

E surgiram sereias da garganta de Jandira:

o ar inteirinho ficou rodeado de sons

mais palpáveis do que pássaros.

E as antenas das mãos de Jandira

captavam objetos animados, inanimados,

dominavam a rosa, o peixe, a máquina.

E os mortos acordavam nos caminhos visíveis do ar

quando Jandira penteava a cabeleira...


Depois o mundo desvendou-se completamente,

foi-se levantando, armado de anúncios luminosos.

E jandira apareceu inteiriça,

de cabeça aos pés.

Todas as partes do mecanismo tinham importância.

E a moça apareceu com o cortejo do seu pai,

de sua mãe, de seus irmãos.

Eles é que obedecem aos sinais de Jandira

crescendo na vida em graça, beleza, violência.

Os namorados passavam, cheiravam os seios de Jandira

e eram precipitados nas delícias do inferno.

Eles jogavam por causa de Jandira,

deixavam noivas, esposas, mães, irmãs

por causa de Jandira.

E Jandira não tinha pedido coisa alguma.

E vieram retratos no jornal

e apareceram cadáveres boiando por causa de Jandira.

Certos namorados viviam e morriam

por causa de um detalhe de Jandira.

Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira.

Outro, por causa de uma pinta na face esquerda de Jandira.

E seus cabelos cresciam furiosamente com a força das máquinas;

não caía nem um fio,

nem ela os aparava.

E sua boca era um disco vermelho

tal qual um sol mirim.

Em roda do cheiro de Jandira

a família andava tonta.

As visitas tropeçavam nas conversações

por causa de Jandira.


E um padre na missa

esqueceu de fazer o sinal-da-cruz por causa de Jandira.


E Jandira se casou.

E seu corpo inaugurou uma vida nova,

apareceram ritmos que estavam de reserva,

combinações de movimento entre as ancas e os seios.

À sombra do seu corpo nasceram quatro meninas que repetem

as formas e os sestros de Jandira desde o princípio do tempo.


E o marido de Jandira

morreu na epidemia de gripe espanhola.

E Jandira cobriu a sepultura com os cabelos dela.

Desde o terceiro dia o marido

fez um grande esforço para ressucitar:

não se conforma, no quarto escuro onde está,

que Jandira viva sozinha,

que os seios, a cabeleira dela transtornem a cidade

e que ele fique ali à toa.


E as filhas de Jandira

inda parecem mais velhas do que ela.

E Jandira não morre,

espera que os clarins do juízo final

venham chamar seu corpo,

mas eles não vêm.

E mesmo que venham, o corpo de Jandira

ressuscitará inda mais belo, mais ágil e transparente.





























Murilograma a Graciliano Ramos


1

Brabo. Olhofaca. Difícil.

Cacto já se humanizando,


Deriva de um solo sáfaro

Que não junta, antes retira,


Desacontece, desquer.


2

Funda o estilo à sua imagem:

Na tábua seca do livro


Nenhuma voluta inútil.

Rejeita qualquer lirismo.


Tachando a flor de feroz.


3

Tem desejos amarelos.

Quer amar, o sol ulula,


Leva o homem do deserto

(Graciliano-Fabiano)


Ao limite irrespirável.


4

Em dimensão de grandeza

Onde o conforto é vacante,


Seu passo trágico escreve

A épica real do BR


Que desintegrado explode.




Pré-história



Mamãe vestida de rendas

Tocava piano no caos.

Uma noite abriu as asas

Cansada de tanto som,

Equilibrou-se no azul,

De tonta não mais olhou

Para mim, para ninguém!

Cai no álbum de retratos.

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