segunda-feira, 13 de abril de 2009

Drummond

Infância

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.

Minha mãe ficava sentada cosendo.

Meu irmão pequeno dormia.

Eu sozinho menino entre mangueiras

lia a história de Robinson Crusoé,

comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu

a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu

chamava para o café.

Café preto que nem a preta velha

café gostoso

café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo

olhando para mim:

- Psiu... Não acorde o menino.

Para o berço onde pousou um mosquito.

E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava

no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história

era mais bonita que a de Robinson Crusoé.



A Flor e a Náusea


Preso à minha classe e a algumas roupas,

vou de branco pela rua cinzenta.

Melancolias, mercadorias espreitam-me.

Devo seguir até o enjôo?

Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:

não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre

fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

Sob a pele das palavras há cifras e códigos.

O sol consola os doentes e não os renova.

As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Uma flor nasceu na rua!

Vomitar esse tédio sobre a cidade.

Quarenta anos e nenhum problema

resolvido, sequer colocado.

Nenhuma carta escrita nem recebida.

Todos os homens voltam para casa.

Estão menos livres mas levam jornais

e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?

Tomei parte em muitos, outros escondi.

Alguns achei belos, foram publicados.

Crimes suaves, que ajudam a viver.

Ração diária de erro, distribuída em casa.

Os ferozes padeiros do mal.

Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.

Porém meu ódio é o melhor de mim.

Com ele me salvo

e dou a poucos uma esperança mínima.

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

Ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios

garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde

e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.


Iniciação amorosa


A rede entre duas mangueiras

balançava no mundo profundo.

O dia era quente, sem vento.

O sol lá em cima,

as folhas no meio,

o dia era quente.

E como eu não tinha nada que fazer vivia

namorando as pernas morenas da lavadeira.

Um ida ela veio para a rede,

se enroscou nos meus braços

me deu um abraço,

me deu as maminhas

que eram só minhas.

A rede virou,

o mundo afundou.

Depois fui para a cama

febre 40 graus febre.

Uma lavadeira imensa, com duas tetas imensas,

girava no espaço verde.


Caso do Vestido

Nossa mãe, o que é aquele

vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido

de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?

Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.

Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, dizei depressa

que vestido é esse vestido.

Minhas filhas, mas o corpo

ficou frio e não o veste.

O vestido, nesse prego,

está morto, sossegado.

Nossa mãe, esse vestido

tanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutai

palavras de minha boca.

Era uma dona de longe,

vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado,

se perdeu tanto de nós,

se afastou de toda vida,

se fechou, se devorou,

chorou no prato de carne,

bebeu, brigou, me bateu,

me deixou com vosso berço,

foi para a dona de longe,

mas a dona não ligou.

Em vão o pai implorou.

Dava apólice, fazenda,

dava carro, dava ouro,

beberia seu sobejo,

lamberia seu sapato.

Mas a dona nem ligou.

Então vosso pai, irado,

me pediu que lhe pedisse,

a essa dona tão perversa,

que tivesse paciência

e fosse dormir com ele...

Nossa mãe, por que chorais?

Nosso lenço vos cedemos.

Minhas filhas, vosso pai

chega ao pátio. Disfarcemos.

Nossa mãe, não escutamos

pisar de pé no degrau.

Minhas filhas, procurei

aquela mulher do demo.

E lhe roguei que aplacasse

de meu marido a vontade.

Eu não amo teu marido,

me falou ela se rindo.

Mas posso ficar com ele

se a senhora fizer gosto,

só pra lhe satisfazer,

não por mim, não quero homem.

Olhei para vosso pai,

os olhos dele pediam.

Olhei para a dona ruim,

os olhos dela gozavam.

O seu vestido de renda,

de colo mui devassado,

mais mostrava que escondia

as partes da pecadora.

Eu fiz meu pelo-sinal,

me curvei... disse que sim.

Sai pensando na morte,

mas a morte não chegava.

Andei pelas cinco ruas,

passei ponte, passei rio,

visitei vossos parentes,

não comia, não falava,

tive uma febre terçã,

mas a morte não chegava.

Fiquei fora de perigo,

fiquei de cabeça branca,

perdi meus dentes, meus olhos,

costurei, lavei, fiz doce,

minhas mãos se escalavraram,

meus anéis se dispersaram,

minha corrente de ouro

pagou conta de farmácia.

Vosso pais sumiu no mundo.

O mundo é grande e pequeno.

Um dia a dona soberba

me aparece já sem nada,

pobre, desfeita, mofina,

com sua trouxa na mão.

Dona, me disse baixinho,

não te dou vosso marido,

que não sei onde ele anda.

Mas te dou este vestido,

última peça de luxo

que guardei como lembrança

daquele dia de cobra,

da maior humilhação.

Eu não tinha amor por ele,

ao depois amor pegou.

Mas então ele enjoado

confessou que só gostava

de mim como eu era dantes.

Me joguei a suas plantas,

fiz toda sorte de dengo,

no chão rocei minha cara,

me puxei pelos cabelos,

me lancei na correnteza,

me cortei de canivete,

me atirei no sumidouro,

bebi fel e gasolina,

rezei duzentas novenas,

dona, de nada valeu:

vosso marido sumiu.

Aqui trago minha roupa

que recorda meu malfeito

de ofender dona casada

pisando no seu orgulho.

Recebei esse vestido

e me dai vosso perdão.

Olhei para a cara dela,

quede os olhos cintilantes?

quede graça de sorriso,

quede colo de camélia?

quede aquela cinturinha

delgada como jeitosa?

quede pezinhos calçados

com sandálias de cetim?

Olhei muito para ela,

boca não disse palavra.

Peguei o vestido, pus

nesse prego da parede.

Ela se foi de mansinho

e já na ponta da estrada

vosso pai aparecia.

Olhou pra mim em silêncio,

mal reparou no vestido

e disse apenas: — Mulher,

põe mais um prato na mesa.

Eu fiz, ele se assentou,

comeu, limpou o suor,

era sempre o mesmo homem,

comia meio de lado

e nem estava mais velho.

O barulho da comida

na boca, me acalentava,

me dava uma grande paz,

um sentimento esquisito

de que tudo foi um sonho,

vestido não há... nem nada.

Minhas filhas, eis que ouço

vosso pai subindo a escada.


Elegia 1938


Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,

onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.

Praticas laboriosamente os gestos universais,

sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,

e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.

À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze

ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra

e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.

Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina

e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas

sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.

A literatura estragou tuas melhores horas de amor.

Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota

e adiar para outro século, a felicidade coletiva.

Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição

porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.


Poema de sete faces


Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.

O homem atrás do bigode

é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos , raros amigos

o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo

se eu me chamasse Raimundo,

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo.


Invocação Irada


Ficou o nome no tempero da comida,

nas fibras da carne

na saliva,

no ouro da mina ficou o nome.

Ó nome desleal que me escavacas

qual se fosse punhal ou fero abutre,

que te fiz para assim permaneceres

dentro de meu ser, se fora dele

não existes nem notícia te preserva?

Foge, foge de mim para tão longe

quanto alcance a mente humana delirante.

Suplico-te que deixes

um vácuo sem esperança de lotar,

amplo, soturno espaço irremediável,

mas deixa-me, larga-me, evapora-te

de toda minha vida e meu pensar.

Sei que não me escutas,

és indiferente a meu apelo

nem dependes de teu próprio querer.

Gás flutuante,

perversa essência eterna torturante,

vai-te embora, vai

anel satânico de vogais e consoantes

que esta boca repete sem querer.

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