quinta-feira, 16 de abril de 2009

Cine Vest

O CineVest é um projeto dos alunos de história da UFJF, que tem o intuito de trazer até os alunos do ensino médio da rede pública um complemento para o conteúdo do vestibular. Pretendemos fazer isso projetando filmes com o tema voltado para o vestibular, elaborando uma discussão sobre o filme após a sua exibição. O projeto será realizado às 9h00min, aos sábados, na Biblioteca Municipal Murilo Mendes.

Programação

O primeiro filme, do dia 18, será sobre a Antiguidade Clássica.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Biblioteca Municipal Murilo Mendes

A Biblioteca Municipal Murilo Mendes tem em seu acervo atualmente, um total de 46.997 livros, divididos entre a Sede (41.642) e a Sucursal de Benfica (5.335). Possui também um interessante acervo de jornais e revistas de circulação nacional e local. Estão ainda disponíveis livros na linguagem Braille e fitas cassete para deficientes visuais.

Todo o acervo é formado basicamente por doações da comunidade juizforana.

Quem foi Murilo Mendes?

Murilo Monteiro Mendes, nasceu dia 13 de maio de 1901, em Juiz Fora, Minas Gerais. Aos 9 anos diz ter tido uma revelação poética ao assistir a passagem do cometa Halley. Em 1917, uma nova revelação: fugiu do colégio em Niterói para assistir, no Rio de Janeiro, às apresentações do bailarino Nijinski. Muda-se definitivamente para o Rio em 1920. Os anos de 1924 a 1929 foram dedicados à formação cultural e à luta contra a instabilidade profissional. Foi arquivista no Ministério da Fazenda e funcionário do Banco Mercantil. Nesse período publica poemas em revistas modernistas como "Verde" e "Revista de Antropofagia". Seu primeiro livro, "Poemas", é publicado em 1930. É agraciado com o Prêmio Graça Aranha. Converte-se ao catolicismo em 1934. Torna-se inspetor de ensino em 1935. Em 1940, conhece Maria da Saudade Cortesão, com quem se casaria em 1947. Com tuberculose, é internado em sanatório na região de Petrópolis, em 1934. Em 1946, torna-se escrivão da 4ª Vara de Família do Distrito Federal. Cumpre missão cultural na Europa, proferindo diversas conferências. Muda-se para a Itália em 1957, onde se torna professor de Cultura Brasileira na Universidade de Roma. Foi também professor na Universidade de Pisa. Seus livros são publicados por toda a Europa. Em 1972, recebe o prêmio internacional de poesia Etna-Taormina. Vem ao Brasil pela última vez. Murilo Mendes morre em Lisboa, no dia 13 de agosto de 1975.

Módulo I do triênio 2009-2011

Gregório de Matos

SONETOS LÍRICOS E SATÍRICOS

A) À cidade da Bahia


Triste Bahia! oh! quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mim abundante.

A ti trocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando e tem trocado
Tanto negócio e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.

Oh! Se quisera Deus que, de repente
Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!



B) Descreve o que era naquele tempo a cidade da Bahia



A cada canto um grande conselheiro,

Que nos quer governar cabana e vinha;

Não sabem governar sua cozinha,

E podem governar o mundo inteiro.



Em cada porta um bem freqüente olheiro,

Que a vida do vizinho e da vizinha

Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,

Para o levar à praça e ao terreiro.



Muitos mulatos desavergonhados,

Trazidos sob os pés os homens nobres,

Posta nas palmas toda a picardia,



Estupendas usuras nos mercados,

Todos os que não furtam muito pobres:

E eis aqui a cidade da Bahia.



C) Contemplando nas cousas do mundo desde o seu retiro, lhe retira com o seu apage, com quem a nada escapou da tormenta



      Neste mundo é mais rico o que mais rapa:

      Quem mais limpo se faz, tem mais carepa;

      Com sua língua, ao nobre o vil decepa:

      O velhaco maior sempre tem capa.

      Mostra o patife da nobreza o mapa:

      Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;

      Quem menos falar pode, mais increpa:

      Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.

      A flor baixa se inculca por tulipa;

      Bengala hoje na mão, ontem garlopa,

      Mais isento se mostra o que mais chupa.

      Para a tropa do trapo vazo a tripa

      E mais não igo, porque a Musa topa

      Em apa, epa, ipa, opa, upa.



D) Queixa-se o poeta da plebe ignorante e perseguidora das virtudes



Que me quer o Brasil, que me persegue?

Que me querem pasguates, que me invejam?

Não vêem que os entendidos me cortejam,

E que os nobres é gente que me segue?



Com o seu ódio a canalha que consegue?

Com sua inveja os néscios que motejam?

Se quando os néscios por meu mal mourejam,

Fazem os sábios que a meu mal me entregue.



Isto posto, ignorantes e canalha,

Se ficam por canalha, e ignorantes

No rol das bestas a roerem palha:



E se os senhores nobres e elegantes

Não querem que o soneto vá de valha,

Não vá, que tem terríveis consoantes.



E) Aos principais da Bahia chamados os Caramurus



Há coisa como ver um Paiaiá

Mui prezado de ser Caramuru,

Descendente de sangue de tatu,

Cujo torpe idioma é Cobepá?



A linha feminina é Carimá

Muqueca, pititinga, caruru,

Mingau de puba, vinho de caju

Pisado num pilão de Pirajá.



A masculina é um Aricobé,

Cuja filha Cobé, c'um branco Paí

Dormiu no promontório de Passé,



O branco é um Marau que veio aqui:

Ela é uma índia de Maré;

Cobepá, Aricobé, Cobé, Paí.



F) A certa personagem desvanecida



Um soneto começo em vosso gabo:

Contemos esta regra por primeira,

Já lá vão duas, e esta é a terceira,

Já este quartetinho está no cabo.



Na quinta torce agora a porca o rabo:

A sexta vá também desta maneira:

na sétima entro já com grã canseira,

E saio dos quartetos muito brabo.



Agora nos tercetos que direi;

Direi que vós, Senhor, a mim me honrais

Gabando-vos a vós, e eu fico um rei.



Nesta vida um soneto já ditei;

Se desta agora escapo, nunca mais:

Louvado seja Deus, que o acabei.



G) Pondera agora com mais atenção a formosura de D. Ângela



Não vira em minha vida a formosura,

Ouvia falar nela cada dia,

E ouvida me incitava, e me movia

A querer ver tão bela arquitetura:



Ontem a vi por minha desventura

Na cara, no bom ar, na galhardia

De uma mulher, que em Anjo se mentia:

De um sol, que se trajava em criatura:



Matem-me, disse eu vendo abrasar-me,

Se esta a cousa não é, que encarecer-me

Sabia o mundo, e tanto exagerar-me:



Olhos meus, disse então por defender-me,

Se a beleza heis de ver para matar-me,

Antes olhos cegueis, do que eu perder-me.



H) Rompe o poeta com a primeira impaciência querendo declarar-se e temendo perder por ousado



Anjo no nome, Angélica na cara.

Isso é ser flor, e Anjo juntamente,

Ser Angélica flor, e Anjo florente,

Em quem, senão em vós se uniformara?



Quem veria uma flor, que a não cortara

De verde pé, de rama florescente?

E quem um Anjo vira tão luzente,

Que por seu Deus, o não idolatrara?



Se como Anjo sois dos meus altares,

Fôreis o meu custódio, e minha guarda,

Livrara eu de diabólicos azares.



Mas vejo, que tão bela, e tão galharda,

Posto que os Anjos nunca dão pesares,

Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.



I) Pergunta-se neste problema qual é maior, se o bem perdido na posse, ou o que se perde antes de se lograr? Defende o bem já possuído



Quem perde o bem, que teve possuído,

A morte não dilate ao sentimento,

Que esta dor, esta mágoa, este tormento

Não pode ter tormento parecido.



Quem perde o bem logrado, tem perdido

O discurso, a razão, o entendimento,

Porque caber não pode em pensamento

A esperança de ser restituído.



Quando fosse a esperança alento à vida,

Té nas faltas do bem seria engano

O presumir melhoras desta sorte.



Porque, onde fala o bem é homicida

A memória, que atalha o próprio dano,

O refúgio, que priva a mesma morte.



J) Namorado, o poeta fala com o arroio



Como corres, arroio fugitivo?

Adverte, para, pois precipitado

Como soberbo, como o meu cuidado,

Que sempre a despenhar se corre altivo.



Toma atrás, considera discursivo,

Que esse curso, que levas apressado,

No caminho, que empreendes despenhado

Te deixa morto, e me retrata vivo.



Porém corre, não pares, pois o intento,

Que teu desejo conseguir procura,

Logra o ditoso fim do pensamento.



Triste de um pensamento sem ventura,

Que tendo venturoso o nascimento,

Não acha assim ditosa a sepultura.



K) A um penhasco vertendo água



Como exalas, penhasco, o licor puro,

Lacrimante a floresta lisonjeando?

Se choras por ser duro, isso é ser brando,

Se choras por ser brando, isso é ser duro.



Eu, que o rigor lisonjear procuro,

No mal me rio, dura penha, amando;

Tu, penha, sentimentos ostentando,

Que enterneces a selva, te asseguro.



Se a desmentir afetos me desvio,

Prantos, que o peito banham, corroboro,

De teu brotado humor, regato frio.



Chora festivo já, cristal sonoro;

Que quanto choras se converte em rio,

E quanto eu rio, se converte em choro.



L) Aos afetos e lágrimas derramadas na ausência da dama a quem queria bem



Ardor em firme coração nascido;

Pranto por belos olhos derramado;

Incêndio em mares de água disfarçado;

Rio de neve em fogo convertido:



Tu, que em um peito abrasas escondido;

Tu, que em um rosto corres desatado;

Quando fogo, em cristais aprisionado;

Quando cristal em chamas derretido.



Se és fogo como passas brandamente,

Se és neve, como queimas com porfia?

Mas ai, que andou Amor em ti prudente!



Pois para temperar a tirania,

Como quis que aqui fosse a neve ardente,

Permitiu parecesse a chama fria.














Módulo II do triênio 2008-2010

Camões

CAMÔES


a) Amor é fogo que arde sem se ver


Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?



b) O dia em que nasci moura e pereça

O dia em que nasci moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar;
Não torne mais ao Mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o Sol padeça.

A luz lhe falte, O Sol se [lhe] escureça,
Mostre o Mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao Mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!

c) Eu cantarei de amor tão docemente
Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.

Farei que amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Porém, pera cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa
Aqui falta saber, engenho e arte.

d) Quem diz que Amor é falso ou enganoso
Quem diz que Amor é falso ou enganoso,
Ligeiro, ingrato, vão desconhecido,
Sem falta lhe terá bem merecido
Que lhe seja cruel ou rigoroso.

Amor é brando, é doce, e é piedoso.
Quem o contrário diz não seja crido;
Seja por cego e apaixonado tido,
E aos homens, e inda aos Deuses, odioso.

Se males faz Amor em mim se vêem;
Em mim mostrando todo o seu rigor,
Ao mundo quis mostrar quanto podia.

Mas todas suas iras são de Amor;
Todos os seus males são um bem,
Que eu por todo outro bem não trocaria.


e) Tanto de meu estado me acho incerto
Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio;
O mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando;
Nu~a hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar u~a hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.

f) Erros meus, má fortuna, amor ardente
Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que pera mim bastava amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa [a] que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!


g) Enquanto quis Fortuna que tivesse
Enquanto quis Fortuna que tivesse
Esperança de algum contentamento,
O gosto de um suave pensamento
Me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse
Minha escritura a algum juízo isento,
Escureceu-me o engenho co'o tormento,
Para que seus enganos não disesse

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades! Quando lerdes
Num breve livro casos tão diversos,

Verdades puras são e não defeitos;
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos.




Bocage

BOCAGE - LÍRICO



a) Chorosos versos meus desencontrados

Chorosos versos meus desencontrados,
Sem arte, sem beleza, e sem brandura,
Urdidos pela mão da Desventura,
Pela baça Tristeza envenenados:

Vede a luz, não busqueis, desesperados,
No mudo esquecimento a sepultura;
Se os ditosos vos lerem sem ternura,
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados:

Não vos inspire, ó versos, cobardia
Da sátira mordaz o furor louco,
Da maldizente voz a tirania:

Desculpa tendes, se valeis tão pouco ;
Que não pode cantar com melodia
Um peito, de gemer cansado e rouco.



b) Incultas produções da mocidade

Incultas produções da mocidade
Expondo a vossos olhos, ó leitores:
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade, e não louvores:

Ponderai da fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas, e amores;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração dos seus favores:

E se entre versos de sentimento
Encontrades alguns, cuja aparência
Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.







c) Fiei-me nos sorrisos da ventura



Fiei-me nos sorrisos da ventura
Em mimos femininos ,como fui louco!
Vi raiar o prazer, porém tão pouco
Momentâneo relâmpago não dura:

No meio agora desta selva escura,
Dentro deste penedo húmido e ouço,
Pareço, até no tom lúgubre, e rouco
Triste sombra a carpir na sepultura:

Que estância para mim tão própria é esta!
Causais-me um doce, e fúnebre transporte,
Áridos matos, lôbrega floresta!

Ah! Não me roubou tudo a negra sorte:
Inda tenho este abrigo , inda me resta
O pranto, a queixa, a solidão e a morte.



d) Camões, grande Camões, quão semelhante

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa no fez perdendo o Tejo
Arrostar co sacrílego gigante:

Como tu, junto ao Ganges sussurrante
Da penúria cruel no horror me vejo:
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante:

Ludibrio , como tu, da sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura:

Modelo meu tu és... Mas, oh tristeza!...
Se te imito nos transes da ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.











e) A frouxidão no amor é uma ofensa



A frouxidão no amor é uma ofensa,
Ofensa que se eleva a grau supremo;
Paixão requer paixão, fervor e extremo;
Com extremo e fervor se recompensa.

Vê qual sou, vê qual és, vê que diferença!
Eu descoro, eu praguejo, eu ardo, eu gemo;
Eu choro, eu desespero, eu clamo, eu tremo;
Em sombras a razão se me condensa:

Tu só tens gratidão, só tens brandura,
E antes que um coração pouco amoroso
Quisera ver-te uma alma ingrata e dura:

Talvez me enfadaria aspecto iroso,
Mas de teu peito a lânguida ternura
Tem-me cativo e não me faz ditoso.



f) Já Bocage não sou!... À cova escura

Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento;
Musa!...Tivera algum merecimento
Se um raio da razão seguisse pura!

Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:

Outro Aretino fui...A Santidade Manchei!...
Oh! Se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade.



g) Meu ser evaporei na lida insana

Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel de paixões, que me arrastava;
Ah! Cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
Em mim quase imortal a essência humana:

De que inúmeros sóis a mente ufana
Existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe Natureza escrava
Ao mal, que a vida em sua orgia dana.

Prazeres, sócios meus, e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos:

Deus, oh Deus!... Quando a morte à luz me roube
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.





SATÍRICO



a) Nariz, nariz, e nariz

Nariz, nariz, e nariz,
Nariz, que nunca se acaba;
Nariz, que se ele desaba,
Fará o mundo infeliz;
Nariz, que Newton não quis
Descrever-lhe a diagonal;
Nariz de massa infernal,
Que, se o cálculo não erra,
Posto entre o Sol e a Terra,
Faria eclipse total!



b) Magro, de olhos azuis, carão moreno

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno:

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno:

Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
Inimigo de hipócritas, e frades:

Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou cagando ao vento.





c) Lá quando em mim perder a humanidade



Lá quando em mim perder a humanidade
Mais um daqueles, que não fazem falta,
Verbi-gratia — o teólogo, o peralta,
Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade:

Não quero funeral comunidade,
Que engrole sub-venites em voz alta;
Pingados gatarrões, gente de malta,
Eu também vos dispenso a caridade:

Mas quando ferrugenta enxada idosa
Sepulcro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:

"Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
Passou a vida folgada, e milagrosa;
Comeu, bebeu, fodeu, sem ter dinheiro."



Castro Alves

Navio Negreiro



I

'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.

'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...

'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...

Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.

Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!

Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
..........................................................

Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.


II


Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.

Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!

O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!

Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu ...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu! ...


III


Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!


IV


Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...


V


Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...

São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . .

São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.

Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
... Adeus, ó choça do monte,
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores... adeus!...

Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.

Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ...


VI


Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!






Adormecida

Ses longs cheveux épars la couvrent tout entière
La croix de son collier repose dans sa main,
Comme pour témaigner qu'elle a fait sa prière.
Et qu'elle va la faire en s'éveiliant demain.
A. DE MUSSET

Uma noite eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.

'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte
Via-se a noite plácida e divina.

De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras
Iam na face trêmulos — beijá-la.

Era um quadro celeste!... A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...

Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!

E o ramo ora chegava, ora afastava-se...
Mas quando a via despeitada a meio,
P'ra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...

Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
"Ó flor! — tu és a virgem das campinas!
"Virgem! tu és a flor da minha vida!..."




Gonçalves Dias

I-JUCA PIRAMA  
(do tupi, "o que há de ser morto, e que é digno de ser morto")  
 

I 

No meio das tabas de amenos verdores,  
Cercada de troncos - cobertos de flores,  
Alteiam-se os tetos d'altiva nação;  
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,  
Temíveis na guerra, que em densas coortes  
Assombram das matas a imensa extensão. 

São rudos, severos, sedentos de glória,  
Já prélios incitam, já cantam vitória,  
Já meigos atendem à voz do cantor:  
São todos Timbiras, guerreiros valentes!  
Seu nome lá voa na boca das gentes,  
Condão de prodígios, de glória e terror! 

As tribos vizinhas, sem forças, sem brio,  
As armas quebrando, lançando-as ao rio,  
O incenso aspiraram dos seus maracás:  
Medrosos das guerras que os fortes acendem,  
Custosos tributos ignavos lá rendem,  
Aos duros guerreiros sujeitos na paz. 

No centro da taba se estende um terreiro,  
Onde ora se aduna o concílio guerreiro  
Da tribo senhora, das tribos servis:  
Os velhos sentados praticam d'outrora,  
E os moços inquietos, que a festa enamora,  
Derramam-se em torno dum índio infeliz. 

Quem é? - ninguém sabe: seu nome é ignoto,  
Sua tribo não diz: - de um povo remoto  
Descende por certo - dum povo gentil;  
Assim lá na Grécia ao escravo insulano  
Tornavam distinto do vil muçulmano  
As linhas corretas do nobre perfil. 

Por casos de guerra caiu prisioneiro  
Nas mãos dos Timbiras: - no extenso terreiro -  
Assola-se o teto, que o teve em prisão;  
Convidam-se as tribos dos seus arredores,  
Cuidosos se incumbem do vaso das cores,  
Dos vários aprestos da honrosa função. 

Acerva-se a lenha da vasta fogueira,  
Entesa-se a corda de embira ligeira,  
Adorna-se a maça com penas gentis:  
A custo, entre as vagas do povo da aldeia  
Caminha o Timbira, que a turba rodeia,  
Garboso nas plumas de vário matiz. 

Entanto as mulheres com leda trigança,  
Afeitas ao rito da bárbara usança,  
O índio já uqerem cativo acabar:  
A coma lhe cortam, os membros lhe tingem,  
Brilhante enduape no corpo lhe cingem,  
Sombreia-lhe a fronte gentil canitar.  
 

II 

Em fundos vasos d'alvacenta argila  
ferve o cauim;  
Enchem-se as copas, o prazer começa,  
reina o festim. 

O prisioneiro, cuja morte anseiam,  
sentado está,  
O prisioneiro, que outro sol no ocaso  
jamais verá! 

A dura corda, que lhe enlaça o colo,  
mostra-lhe o fim  
Da vida escura, que será mais breve  
do que o festim! 

Contudo os olhos d'ignóbil pranto  
secos estão;  
Mudos os lábios não descerram queixas  
do coração. 

Mas um martírio, que encobrir não pode,  
em rugas faz  
A mentirosa placidez do rosto  
na fronte audaz! 

Que tens, guerreiro? Que terror te assalta  
no passo horrendo?  
Honra das tabas que nascer te viram,  
folga morrendo. 

Folga morrendo; porque além dos Andes  
revive o forte,  
Que soube ufano contrastar os medos  
da fria morte. 

Rasteira grama, exposta ao sol, à chuva,  
lá murcha e pende:  
Somente ao tronco, que devassa os ares,  
o raio ofende! 

Que foi? Tupã mandou que ele caísse,  
como viveu;  
E o caçador que o avistou prostrado  
esmoreceu! 

Que temes, ó guerreiro? Além dos Andes  
revive o forte,  
Que soube ufano contrastar os medos  
da fria morte.  
 

III 

Em larga roda de novéis guerreiros  
Ledo caminha o festival Timbira,  
A quem do sacrifício cabe as honras. 

Na fronte o canitar sacode em ondas,  
O enduape na cinta se embalança,  
Na destra mão sopesa a ivirapeme,  
Orgulhoso e pujante. Ao menor passo 

Colar d'alvo marfim, insígnia d'honra,  
Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme,  
Como que por feitiço não sabido  
Encantadas ali as almas grandes  
Dos vencidos Tapuias, inda chorem  
Serem glória e brasão d'imigos feros. 

"Eis-me aqui", diz ao índio prisioneiro;  
"Pois que fraco, e sem tribo, e sem família,  
As nossas matas devastaste ousado,  
Morrerás morte vil da mão de um forte." 

Vem a terreiro o mísero contrário;  
Do colo à cinta a muçurana desce:  
"Dize-nos quem és, tesu feitos canta,  
Ou se mais te apraz, defende-te. "Começa  
O índio, que ao redor derrama os olhos,  
Com triste voz os ânimos comove.  
 

IV 

Meu canto de morte,  
Guerreiros, ouvi:  
Sou filho das selvas,  
Nas selvas cresci;  
Guerreiros, descendo  
Da tribo Tupi. 

Da tribo pujante,  
Que agora anda errante  
Por fado inconstante,  
Guerreiros, nasci;  
Sou bravo, sou forte,  
Sou filho do Norte;  
Meu canto de morte,  
Guerreiros, ouvi. 

Já vi cruas brigas,  
De tribos imigas,  
E as duras fadigas  
Da guerra provei;  
Nas ondas mendaces  
Senti pelas faces  
Os silvos fugaces  
Dos ventos que amei. 

Andei longes terras,  
Lidei cruas guerras,  
Vaguei pelas serras  
Dos vis Aimorés;  
Vi lutas de bravos,  
Vi fortes - escravos!  
De estranhos ignavos  
Calcados aos pés. 

E os campos talados,  
E os arcos quebrados,  
E os piagas coitados  
Já sem maracás;  
E os meigos cantores,  
Servindo a senhores,  
Que vinham traidores,  
Com mostras de paz. 

Aos golpes do imigo  
Meu último amigo,  
Sem lar, sem abrigo  
Caiu junto a mi!  
Com plácido rosto,  
Sereno e composto,  
O acerbo desgosto  
Comigo sofri. 

Meu pai a meu lado  
Já cego e quebrado,  
De penas ralado,  
Firmava-se em mi:  
Nós ambos, mesquinhos,  
Por ínvios caminhos,  
Cobertos d'espinhos  
Chegamos aqui! 

O velho no entanto  
Sofrendo já tanto  
De fome e quebranto,  
Só qu'ria morrer!  
Não mais me contenho,  
Nas matas me embrenho,  
Das frechas que tenho  
Me quero valer. 

Então, forasteiro,  
Caí prisioneiro  
De um troço guerreiro  
Com que me encontrei:  
O cru dessossego  
Do pai fraco e cego,  
Enquanto não chego,  
Qual seja - dizei! 

Eu era o seu guia  
Na noite sombria,  
A só alegria  
Que Deus lhe deixou:  
Em mim se apoiava,  
Em mim se firmava,  
Em mim descansava,  
Que filho lhe sou. 

Ao velho coitado  
De penas ralado,  
Já cego e quebrado,  
Que resta? - Morrer.  
Enquanto descreve  
O giro tão breve  
Da vida que teve,  
Deixa-me viver! 

Não vil, não ignavo,  
Mas forte, mas bravo,  
Serei vosso escravo:  
Aqui virei ter.  
Guerreiros, não coro  
Do pranto que choro;  
Se a vida deploro,  
Também sei morrer.  
 

V 

"Soltai-o!" diz o chefe. Pasma a turba;  
Os guerreiros murmuram: mal ouviram,  
Nem pôde nunca um chefe dar tal ordem!  
Brada segunda vez com voz mais alta,  
Afrouxam-se as prisões, a embira cede,  
A custo, sim; mas cede: o estranho é salvo,  
"Timbira", diz o índio enternecido,  
Solto apenas dos nós que o seguravam:  
"És um guerreiro ilustre, um grande chefe,  
Tu que assim do meu mal te comoveste,  
Nem sofres que, transposta a natureza,  
Com olhos onde a luz já não cintila,  
Chore a morte do filho o pai cansado,  
Que somente por seu na voz conhece,  
"És livre; parte.  
 "E voltarei." 
"Debalde." 
"Sim, voltarei, morto meu pai." 
"Não voltes." 
É bem feliz, se existe, em que não veja, 
Que filho tem, qual chora: és livre; parte!" 
"Acaso tu supões que me acobardo, 
Que receio morrer!" 
"És livre; parte!" 
"Ora não partirei; quero provar-te 
Que um filho dos Tupis vive com honra, 
E com honra maior, se acaso o vencem, 
Da morte o passo glorioso afronta.

"Mentiste, que um Tupi não chora nunca, 
E tu choraste!... parte; não queremos 
Com carne vil enfraquecer os fortes." 
Sobresteve o Tupi: - arfando em ondas 
O rebater do coração se ouvia 
  Precípite. - Do rosto  afogueado 
Gélidas bagas de suor corriam: 
Talvez que o assaltavam um pensamento... 
Já não... que na enlutada fantasia, 
Um pesar, um martírio ao mesmo tempo, 
Do velho pai a morimbunda imagem 
Quase bradar-lhe ouvia: "Ingrato! ingrato!" 
Curvado o colo, taciturno e frio, 
Espectro d'homem, penetrou no bosque! 
 

VI

"Filho meu, onde estás? 
"Ao vosso lado; 
Aqui vos trago provisões: tomai-as, 
As vossas forças restaurai perdidas, 
E a caminho, e já!" 
"Tardaste muito! 
Não era nado o sol, quando partiste, 
E frouxo o seu calor já sinto agora!"

"Sim, demorei-me a divagar sem rumo, 
Perdi-me nestas matas intrincadas, 
Reaviei-me e tornei; mas urge o tempo; 
Convém partir, e já!" 
"Que novos males 
Nos resta de sofrer? - que novas dores, 
No outro fado pior Tupã nos guarda?" 
"As setas da aflição já se esgotaram, 
Nem para novo golpe espaço intacto 
Em nossos corpos resta." 
"Mas tu tremes!" 
"Talvez do afã da caça..." 
"Oh filho caro! 
Um quê misterioso aqui me fala, 
Aqui no coração; piedosa fraude 
Será por certo, que não mentes nunca! 
Não conheces temor, e agora temes? 
Vejo e sei: é Tupã que nos aflige, 
E contra o seu querer não valem brios. 
Partamos!... "E com mão trêmula, incerta 
Procura o filho, tateando as trevas 
Da sua noite lúgubre e medonha. 
Sentindo o acre odor das frescas tintas, 
Uma idéia fatal correu-lhe à mente...

Do filho os membros gélidos apalpa, 
E a dolorosa maciez das plumas 
Conhece estremecendo: - foge, volta, 
encontra sob suas mãos o duro crânio, 
Despido então do natural ornato!... 
Recua aflito e pávido, cobrindo 
Às mãos ambos os olhos fulminados, 
Como que teme ainda o triste velho 
De ver, não mais cruel, porém mais clara, 
Daquele exício grande a imagem viva 
Ante os olhos do corpo afigurada. 
Não era que a verdade conhecesse 
Inteira e cruel qual tinha sido; 
Mas que funesto azar correra o filho, 
Ele o via; ele o tinha ali presente; 
E era de repetir-se a cada instante. 
A dor passada, a previsão futura 
E o presente tão negro, ali os tinha; 
Ali no coração se concentrava, 
Era num ponto só, mas era a morte!

"Tu prisioneiro, tu?" 
"Vós o dissestes." 
"Dos índios?" 
"Sim. 
"De que nação?" 
"Timbiras." 
"E a muçurana funeral rompeste, 
Dos falsos manitôs quebraste a maça..." 
"Nada fiz... aqui estou." 
"Nada!" 
Emudecem; 
Curto instante depois prossegue o velho: 
"Tu és valente, bem o sei: confesso, 
Fizeste-o, certo, ou já não foras vivo!" 
"Nada fiz; mas souberam da existência 
De um pobre velho, que em mim só vivia..." 
"E depois?..."

            "Eis-me aqui." 
            "Fica esta taba?"
"Na direção do sol, quando transmonta." 
"Longe?"
    "Não muito"
            "Tens razão: partamos."
"E quereis ir?..."
            "Na direção do ocaso."
 

VII

"Por amor de um triste velho, 
Que ao termo fatal já chega, 
Vós, guerreiros, concedestes 
A vida a um prisioneiro. 
Ação tão nobre vos honra, 
Nem tão alta cortesia 
Vi eu jamais praticada 
Entre os Tupis - e mas foram 
Senhores em gentileza.

"Eu porém nunca vencido, 
Nem os combates por armas 
Nem por nobreza nos atos; 
Aqui venho, e o filho trago, 
Vós o dizeis prisioneiro, 
Seja assim como dizeis; 
Mandai vir a lenha, o fogo, 
A maça do sacrifício 
E a muçurana ligeira: 
Em tudo o rito se cumpra! 
E quando eu for só na terra, 
Certo acharei entre os vossos, 
Que gentis se revelam, 
Alguém que meus passos guie; 
Alguém que vendo o meu peito 
Coberto de cicatrizes, 
Tomando a vez de meu filho, 
De haver-me por pai se ufane!"

Mas o chefe dos Timbiras, 
Os sobrolhos encrespando, 
Ao velho Tupi guerreiro 
Responde com torvo acento: 
"Nada farei do que me dizes: 
É teu filho imbele e fraco! 
Aviltaria o triunfo 
Da mais guerreira das tribos 
Derramar seu ignóbil sangue: 
Ele chorou de cobarde; 
Nós outros, fortes Timbiras, 
Só de heróis fazemos pasto." 
Do velho Tupi guerreiro 
A surda voz na garganta 
Faz ouvir uns sons confusos, 
Como os rugidos de um tigre, 
Que pouco a pouco se assanha! 
 

VIII

"Tu choraste em presença da morte? 
Na presença de estranhos choraste? 
Não descende o cobarde do forte; 
Pois choraste, meu filho não és! 
Possas tu, descendente maldito 
De uma tribo de nobres guerreiros, 
Implorando cruéis forasteiros, 
Seres presa de vis Aimorés.

"Possas tu, isolado na terra, 
Sem arrimo e sem pátria vagando, 
Rejeitado da morte na guerra, 
Rejeitado dos homens na paz, 
Ser das gentes o espectro execrado; 
Não encontres amor nas mulheres, 
Teus amigos, se amigos tiveres, 
Tenham alma inconstante e falaz!

"Não encontres doçura no dia, 
Nem as cores da aurora te ameiguem, 
E entre as larvas da noite sombria 
Nunca possas descanso gozar 
Não encontres um tronco, uma pedra, 
Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos, 
Padecendo os maiores tormentos, 
Onde possas a fronte pousar.

"Que a teus passos a relva se torre; 
Murchem prados, a flor desfaleça, 
E o regato que límpido corre, 
Mais te acendas o vesano furor; 
Suas águas depressa se tornem, 
Ao contacto dos lábios sedentos, 
Lago impuro de vermes nojentos, 
Donde fujas como asco e terror!

"Sempre o céu, como um teto incendido, 
Creste e punja teus membros malditos 
E o oceano de pó denegrido 
Seja a terra ao ignavo tupi! 
Miserável, faminto, sedento, 
Manitôs lhe não falem nos sonhos, 
E do horror os espectros medonhos 
Traga sempre o cobarde após si.

"Um amigo não tenhas piedoso 
Que teu corpo na terra embalsame, 
Pondo em vaso d'argila cuidoso 
Arco e flecha e tacape a teus pés! 
Sê maldito, e sozinho na terra; 
Pois que a tanta vileza chegaste, 
Que em presença da morte choraste, 
Tu, cobarde, meu filho não és." 
 

IX

Isto dizendo, o meserando velho 
A quem Tupã tamanha dor, tal fado 
Já nos confins da vida reservara, 
Vai com trêmulo pé, com as mãos já frias 
Da sua noite escura as densas trevas 
Palpando. "Alarma! alarma!" O velho pára. 
O grito que escutou é voz do filho, 
Voz de guerra que ouviu já tantas vezes 
Noutra quadra melhor. "Alarma! alarma!" 
Esse momento só vale apagar-lhe 
Os tão compridos transes, as angústias, 
Que o frio coração lhe atormentaram 
De guerreiro e de pai: - vale, e de sobra. 
Ele que em tanta dor se contivera, 
Tomado pelo súbito contraste, 
Desfaz-se agora em pranto copioso, 
Que o exaurido coração remoça.

A taba se alborota, os golpes descem, 
Gritos, imprecações profundas soam, 
Emaranhada a multidão braveja, 
Revolve-se, enovela-se confusa, 
E mais revolta em mor furor se acende. 
E os sons dos golpes que incessantes fervem. 
Vozes, gemidos, estertor da morte 
Vão longe pelas ermas serranias 
Da humana tempestade propagando 
Quantas vagas de povo enfurecido 
Contra um rochedo vivo se quebravam.

Era ele, o Tupi; nem fora justo 
Que a fama dos Tupis - o nome, a glória, 
Aturado labor de tantos anos, 
Derradeiro brasão da raça extinta, 
De um jacto e por um só se aniquilasse.

"Basta!" clama o chefe dos Timbiras, 
"Basta, guerreiro ilustre! assaz lutaste, 
E para o sacrifício é mister forças."

O guerreiro parou, caiu nos braços 
Do velho pai, que o cinge contra o peito, 
Com lágrimas de júbilo brandando: 
"Este, sim, que é meu filho muito amado!

"E pois que o acho enfim, qual sempre o tive, 
Corram livres as lágrimas que choro, 
Estas lágrimas, sim, que não desonram." 
 

X

Um velho Timbira, coberto de glória 
guardou a memória 
Do moço guerreiro, do velho Tupi! 
E à noite, nas tabas, se alguém duvidava  
do que ele contava, 
Dizia prudente: "Meninos, eu vi!

"Eu vi o brioso no largo terreiro 
cantar prisioneiro 
Seu canto de morte, que nunca esqueci: 
Valente, como era, chorou sem ter pejo; 
parece que o vejo, 
Que o tenho nest'hora diante de mim.

"Eu disse comigo: Que infâmia d'escravo! 
Pois não, era um bravo; 
Valente e brioso, como ele, não vi! 
E à fé que vos digo: parece-me encanto 
Que quem chorou tanto, 
Tivesse a coragem que tinha o Tupi!"

Assim o Timbira, coberto de glória, 
guardava a memória 
Do moço guerreiro, do velho Tupi. 
E à noite nas tabas, se alguém duvidava 
do que ele contava, 
Tornava prudente: "Meninos, eu vi!"