segunda-feira, 13 de abril de 2009

Jorge Lima

ESSA NÊGA FULÔ

Ora, se deu que chegou

(isso já faz muito tempo)

no bangüè dum meu avô

uma negra bonitinha

chamada negra Fulô.

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!

(Era a fala da Sinhá.)

Vai forrar a minha cama,

pentear os meus cabelos,

vem ajudar a tirar

a minha roupa, Fulô!

Essa negra Fulô!

Essa negrinha Fulô

ficou logo pra mucama,

para vigiar a Sinhá

pra engomar pro Sinhô!

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

Ó Fulô !! Ó Fuló! (Era a fala da Sínhá.)

Vem me ajudar, Ó Fulô,

vem abanar o meu corpo

que eu estou suada, Fulô!

vem coçar minha coceira,

vem me catar cafuné,

vem balançar minha rede,

vem me contar uma história,

que eu estou com sono, Fulô!

Essa negra Fulô!

"Era um dia uma princesa

que vivia num castelo

que possuía um vestido

com os peixinhos do mar.

Entrou na perna dum pato

saiu na perna dum pinto

o Rei-Sinhô me mandou

que vos contasse mais cinco."

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

Ó Fulô? Ó Fulô?

Vai botar para dormir

esses meninos, Fulô!

"Minha mãe me penteou

minha madrasta me enterrou

pelos figos da figueira que o Sabiá beliscou."

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

Fulô? Ó Fulô?

(Era a fala da Sinhá chamando a Negra Fulô.)

Cadê meu frasco de cheiro

Que o teu Sinhô me mandou?

- Ah! foi você que roubou!

Ah! foi você que roubou!

0 Sinhô foi ver a negra

levar couro do feitor.

A negra tirou a roupa.

0 Sinhô disse: Fulô!

(A vista se escureceu

que nem a negra Fulô.)

Essa negra Fulô!

Essa negra- Fulô!

Ó Fulô? Ó Fulô?

Cadê meu lenço de rendas

cadê meu cinto, meu broche,

cadê meu terço de ouro

que teu Sinhô me mandou?

Ah! foi você que roubou.

Ah! foi você que roubou.

Essa negra Fulô!

Essa negra Fuló!

0 Sinhô foi açoitar

sozinho a negra Fulô.

A negra tirou a saia

e tirou o cabeção,

de dentro dele pulou

nuinha a negra Fulô.

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

Ó Fulô? Ó Fulô?

Cadê, cadê teu Sinhô

que nosso Senhor me mandou?

Ah! foi você que roubou,

foi você, negra Fuló?

Essa negra Fulô!


Dor do mundo

Apenas eu te aceito, não te quero
nem te amo, dor do mundo. Há honraria
que nos abate como um punho fero
mas aceitamos com sobrançaria.

A um vate grego certo rei severo
vazou-lhe os olhos para não fugir.
Ó dor do mundo, eu vivo como Homero,
aceito a provação que me surgir.

Homero a tua história sinto-a; e urdo
o teu destino, o meu e o de teu rei.
Mas só teus olhos nossos passos guiam,

e inda tens vozes para o mundo surdo,
e luz para os outros cegos, luz que herdei
com a aceitação dos olhos que não viam.


E a nau navegou, navegou


E aconteceu naquela noite em que o poeta dormiu só,

sem o calor da companheira para lhe encher os sonhos,

sem o rumor da cidade poluída, lá embaixo,

sem a fala do amigo que o acordasse às pressas;

ter um estranho sonho que lhe foi permitido contar:

e foi que havia inventado um navio para atravessar o mar.

E Deus tendo visto que na terra

ainda havia um homem capaz de inventar uma nau,

deu-lhe o dom de navegar e de descobrir o mundo

e o poder de amansar e circunscrever o vento:

e sob o braço estendido do Senhor

o poeta conseguiu impor a lei às águas

e suspender a âncora e alçar as velas.

E lhe foi ordenado não levar seres vivos

sendo um casal de cada espécie ou cada raça,

ou em qualquer outra diferenciação

porque os homens divididos já não são irmãos!

E o navio não possuía escravos

nem no leme, nem nos remos, nem no bojo sombrio,

e só os homens da bússola orientavam a nau:

o sopro que a impelia era o Vento de Deus

com que o homem fizera todas as descobertas,

pois Ele tinha visto que ainda existia um homem

capaz de navegar e descobrir o mundo!




Democracia


Punhos de redes embalaram o meu canto

para adoçar o meu país, ó Whitman.

Jenipapo coloriu o meu corpo contra os maus-olhados,

catecismo me ensinou a abraçar os hóspedes,

carumã me alimentou quando eu era criança,

Mãe-negra me contou histórias de bicho,

moleque me ensinou safadezas,

massoca, tapioca, pipoca, tudo comi,

bebi cachaça com caju para limpar-me,

tive maleita, catapora e ínguas,

bicho-de-pé, saudade, poesia;

fiquei aluado, mal-assombrado, tocando maracá,

dizendo coisas, brincando com as crioulas,

vendo espíritos, abusões, mães-d’água,

conversando com os malucos, conversando sozinho,

emprenhando tudo que encontrava,

abraçando as cobras pelos matos,

me misturando, me sumindo, em acabando,

para salvar a minha alma benzida

e meu corpo pintado de urucu,

tatuado de cruzes, de corações, de mãos-ligadas,

de nomes de amor em todas as línguas de branco,

[de mouro ou de pagão.




Poema do nadador


A água é falsa, a água é boa.
Nada, nadador!
A água é mansa, a água é doida,
aqui é fria, ali é morna,
a água e fêmea.
Nada, nadador!
A água sobe, a água desce,
a água é mansa, a água é doida.
Nada, nadador!
A água te lambe, a água te abraça
a água te leva, a água te mata.
Nada, nadador!
Senão, que restara de ti, nadador?
Nada, nadador.


Anunciação e Encontro de Mira-Celi,


O avô tinha sido um ancião convencional,

que se enterrou de sobrecasaca e polainas;

e a avó – uma menina pálida que morreu ao pari-la;

o pai fez algumas baladas;

contam que tinha uma luneta para olhar ao longe.

Daí – a mão dobra a página do livro,

e a história da tetraneta finda com uma estocada no ventre:

há destinos travados, lenços quentes de lágrimas,

algum incesto, uma violação sobre um sofá antigo. –

Quando a mão dobra a página, há rastros de sangue no soalho.

Esta é a mais nova das cinco.

Veja que os seios são como neve que nós nunca vimos

e ninguém nunca viu o pai que lhe fez um filho;

e o filho desta menina é este moço de luto.

Agora vire a página é olhe o anjo que ele possuiu,

Veja esta mantilha sobre este ombro puro,

e estes olhos que parecem contemplar as nuvens

através da luneta avoenga. Veja que sem o fotógrafo querer

as cortinas dão a impressão de caras impressionantes

por detrás da gravura: um estudante de cavanhaque e outro de capa.

Repare bem o braço que ninguém sabe de onde

Circunda o busto da moça e a quer levar para um lugar esconso.

Fixe bem o olhar com o ouvido à escuta para perceber a respiração

[grossa,

os gritos, os juramentos... A saia negra parece um sino de luto,

e o decote é a nau que a levou para sempre. E este fundo de água

pode ser o mar muito bem; mas pode ser as lágrimas do fotógrafo.



Musa Inês (Invenção de Orfeu - XIX)


Estavas linda Inês posta em repouso

mas aparentemente bela Inês;

pois de teus olhos lindos já não ouso

fitar o torvelinho que não vês,

o suceder dos rostos cobiçoso

passando sem descanso sob a tez;

que eram tudo memórias fugidias,

máscaras sotopostas que não vias.


Tu, só tu, puro amor e glória crua,

não sabes o que à face traduzidas.

Estavas, linda Inês, aos olhos nua,

transparente no leito em que jazias.

Que a mente costumeira não conclua,

nem conclua da sombra que fazias,

pois, Inês em repouso é movimento,

nada em Inês é inanimado e lento.


As fontes dulçurosas desta ilha

promanam da rainha viva-morta;

o punhal que a feriu é doce tília

de que fez a atra brisa santa porta,

e em cujos ramos suave se enrodilha,

e segredos de amor ao céu transporta.

Não há na vida amor que em vão termine,

nem vão esquecimento que o destine.


Não podendo em sossego Inês estar,

foi preciso mudá-la, nesta lida,

tão inconstante lida – mar e mar.

Descansa a doce Inês na sombra ardida.

Vem alta noite um rei peninsular

amá-la em sua última guarida;

pois que matar de amor bem que se mata

para se amar depois a morta abstrata.


Semelhante amor qual esse Rei houve

à dona Inês não é achado. Em vão!

É preciso louvá-lo, e que se louve

o amor que além da morte é duração.

Ó dorida paixão, acalma-te e ouve:

Fui buscá-la alta noite em seu caixão.

Roubou-a à negra paz minha viuvez.

Pajens, vive de novo a sempre Inês.


E para que não finde a eterna lida

e tudo para sempre se renove

nessa constante musa foragida;

entre Andrômedas e Órions alas move.

A sua trajetória é tão renhida,

que a multidão celícola comove.

Vai ser constelação de um mundo novo,

esperança maior de eterno povo.


Ó paz, ó fim, ó mundo inominado

descansa doce névoa mensageira.

Teu rosto primogênito gelado,

que pólen misterioso te empoeira?

Calendário de lumes começado,

dormida potestade, luz primeira,

eras ontem rainha, hoje és ritual.

Que destino de gente supra-real!


Estavas, linda Inês, posta em sossego

para sempre no mundo sideral;

baila tudo em redor ao teu ofego,

tudo no atlas celeste era teu graal!

Tudo deixaste, ó amor, ó engano cego,

que viver neste mundo acidental

e morrer pelo amor inda é certeza

de jamais parecer musa ou princesa.


Estavas, linda Inês, repercutida

nesse mar, nessa estátua, nesse poema,

e tão justa e tão plena e coincidida,

que eras a alma da vida curta; e extrema

quando se esvai na terra a curta vida.

Tu te refluis na vaga desse tema,

eterna vaga, vaga em movimento,

agitada e tranqüila como o vento.


Inês da terra. Inês do céu. Inês.

Pronunciada dos anjos. Lume e rota.

Apenas obtenção, logo viuvez.

Depois noviciaria. Antes remota.

Agora sombra. Iluminada tez.

Ontem forma palpável. Hoje ignota.

Mas sempre linda Inês, paz, desapego,

porta da vida para os sem-sossego.

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