segunda-feira, 13 de abril de 2009

João Cabral

Catar Feijão


Catar feijão se limita com escrever:

jogam-se os grãos na água do alguidar

e as palavras na da folha de papel;

e depois, joga-se fora o que boiar.

Certo, toda palavra boiará no papel,

água congelada, por chumbo seu verbo:

pois para catar esse feijão, soprar nele,

e jogar fora o leve e oco, palha e eco.


Ora, nesse catar feijão entra um risco:

o de que entre os grãos pesados entre

um grão qualquer, pedra ou indigesto,

um grão imastigável, de quebra dente.

Certo não, quando ao catar palavras:

a pedra dá à frase seu grão mais vivo:

obstrui a leitura fluviante, flutual,

açula a atenção, isca-a com risco.



O Cão Sem Plumas (1949-1950)


A cidade é passada pelo rio

como uma rua

é passada por um cachorro;

uma fruta

por uma espada.


O rio ora lembrava

a língua mansa de um cão

ora o ventre triste de um cão,

ora o outro rio

de aquoso pano sujo

dos olhos de um cão.


Aquele rio

era como um cão sem plumas.

Nada sabia da chuva azul,

da fonte cor-de-rosa,

da água do copo de água,

da água de cântaro,

dos peixes de água,

da brisa na água.


Sabia dos caranguejos

de lodo e ferrugem.

Sabia da lama

como de uma mucosa.

Devia saber dos povos.

Sabia seguramente

da mulher febril que habita as ostras.


Aquele rio

jamais se abre aos peixes,

ao brilho,

à inquietação de faca

que há nos peixes.

Jamais se abre em peixes.


Abre-se em flores

pobres e negras

como negros.

Abre-se numa flora

suja e mais mendiga

como são os mendigos negros.

Abre-se em mangues

de folhas duras e crespos

como um negro.


Liso como o ventre de uma cadela fecunda,

o rio cresce

sem nunca explodir.

Tem, o rio,

um parto fluente e invertebrado

como o de uma cadela.


E jamais o vi ferver

(como ferve

o pão que fermenta).

Em silêncio,

o rio carrega sua fecundidade pobre,

grávido de terra negra.


Em silêncio se dá:

em capas de terra negra, em botinas ou luvas de terra negra

para o pé ou a mão

que mergulha.


Como às vezes

passa com os cães,

parecia o rio estagnar-se.

Suas águas fluíam então

mais densas e mornas;

fluíam com as ondas

densas e mornas

de uma cobra.


Ele tinha algo, então,

da estagnação de um louco.

Algo da estagnação

do hospital, da penitenciária, dos asilos,

da vida suja e abafada

(de roupa suja e abafada)

por onde se veio arrastando.


Algo da estagnação

dos palácios cariados,

comidos

de mofo e erva-de-passarinho.

Algo da estagnação

das árvores obesas

pingando os mil açucares

das salas de jantar pernambucanas,

por onde se veio arrastando.


(É nelas,

mas de costas para o rio,

que “as grandes famílias espirituais” da cidade

chocam os ovos gordos

de sua prosa.

Na paz redonda das cozinhas,

ei-las a revolver viciosamente

seus caldeirões

de preguiça viscosa).


Seria a água daquele rio

fruta de alguma árvore?

Por que parecia aquela

uma água madura?

Por que sobre ela, sempre,

como que iam pousar moscas?


Aquele rio

saltou alegre em alguma parte?

Foi canção ou fonte

em alguma parte?

Por que então seus olhos

vinham pintados de azul

nos mapas?




Tecendo a manhã

1.

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.


Fábula de Anfion


2. O acaso


No deserto, entre os

esqueletos do antigo

vocabulário, Anfion,


no deserto, cinza

e areia como um

lençol, há dez dias


da última erva

que ainda o tentou

acompanhar, Anfion,


no deserto, mais, no

castiço linho do

meio-dia, Anfion,


agora que lavado

de todo canto,

em silêncio, silêncio


Desperto e ativo como

uma lâmina depara

o acaso, Anfion.

(...)


Diz a mitologia

(arejadas salas, de

nítidos enígmas

povoadas, mariscos

ou simples nozes

cuja noite guardada

à luz e ao ar livre

persiste, sem se dissolver)

diz, do aéreo

parto daquele milagre:

Quado a flauta soou

um tempo se desdobrou do

tempo, como uma caixa

de dentro de outra caixa.


3. Anfion em Tebas

(...)


"Esta cidade, Tebas,

não a quisera assim

de tijolos plantada,


que a terra e a flora

procuram reaver

a sua origem menor:


Como já distinguir

onde começa a hera, a argila,

ou a terra acabada?


Desejei longamente

liso muro,e branco,

puro sol em si


como qualquer laranja;

leve laje sonhei

largada no espaço.


Onde a cidade

volante, a nuvem

civil sonhada?"

Nenhum comentário:

Postar um comentário